Há mais de 60 anos que o Sport Clube Melgacense fomenta o desporto local

Aurélio Cardoso conta-nos histórias de um tempo em que os jogos eram de 20 contra 20… E eram uma alegria

 

Aurélio Cardoso, 78 anos, é uma das grandes memórias vivas da fundação do Sport Clube Melgacense, já lá vão 61 anos. Foi presidente do clube entre 1981 e 1988 e vice-presidente de 2000 a 2006. Foi parte e espectador de muitas mudanças na dinâmica desportiva local.

No que ao futebol diz respeito, se a realidade das últimas épocas do clube não espelham grande mobilização popular, o ânimo de Aurélio Cardoso ao falar dos primeiros anos – quando tinham de jogar 20 contra 20, porque queriam jogar todos – são a prova de que a juventude e comunidade melgacense já vibrou muito com os bons momentos do clube da sua terra. Daremos nota disso, mas primeiro vamos um bocadinho ‘lá atrás’, a 1955.

A história do futebol em Melgaço teve algumas descontinuidades e algumas páginas na internet dão nota de várias tentativas de formação de clubes ao longo do século XX, mas com o fim dos Vitoriosos, não havia onde romper as botas no futebol.

As primeiras reuniões – informais, como se adivinha – que dariam forma ao Sport Clube Melgacense que hoje conhecemos começaram na sapataria de Amândio ‘Castilho’, na Rua Direita, frente ao actual Solar do Alvarinho. A memória é de Aurélio Cardoso, ainda adolescente, mas já elemento activo deste grupo que discutia o futuro do futebol.

Aurélio Cardoso tem a história do SC Melgacense na memória e nos arquivos

A vizinhança era numerosa e activa e os grupos de jovens queriam fazer-se valer. Num levantamento que Aurélio Cardoso fez em 2008, em censo feito com base na memória que guarda daquele tempo e com o apoio de um amigo, havia 110 crianças dos 4 aos 14 anos só no centro histórico da vila. No total, entre crianças e adultos, talvez fossem uns 400. A contagem tem por base o mesmo tipo de levantamento, susceptível de alguma margem de erro, mas como toda a gente se conhecia…

Voltando à sapataria de Amândio ‘Castilho’: “Juntávamo-nos ali, era o nosso passatempo. Para o café não íamos porque naquela altura só havia dois cafés em Melgaço e dinheiro não havia. Para as tabernas também não íamos porque éramos rapazes novos, só os mais velhos é que iam”, recorda Aurélio.

Foi também ali que se criaram (e aceitaram) as primeiras alcunhas pelas quais o grupo impulsionador do futebol local mais facilmente se identificava: Amândio Fernandes, o ‘Castilha’; Luís Fernandes Nabeiro, o ‘Luís do Miro’; Aurélio Ferreira Cardoso, o ‘Aurélio do Raúl Cataluna’ e o António da Rocha Pinto, o ‘Tibórnia’. “Toda a gente tinha de ter uma alcunha, eram tantos nomes parecidos”.

Foi neste ambiente que surgiu a ideia de uma equipa de futebol. O campo de futebol seria o de Monte de Prado, que o tempo tinha votado novamente ao abandono e “estava uma selva”. Foi por aí que os entusiastas do desporto começaram as lides: Num domingo, seria Março ou Abril de 1955, juntaram a ferramenta e começaram a cortar o mato que tomara conta do campo de futebol. “Limpamos pouco mais de dez metros e fizemos logo um jogo de treino naquele bocadinho”, conta ainda o fundador.

E assim foi até finais de Junho desse ano: Todos os domingos de manhã, a tarefa de reconquistar o campo de futebol à natureza foi mostrando resultados consistentes. A última batalha contra as infestantes travou-se numa madrugada de 29 de Junho, já passava das quatro horas.

“Houve um baile na festa de São Pedro, em São Julião, na capelinha junto à estrada. Houve tocadores de concertina e a juventude esteve ali toda a dançar até às quatro da manhã. Em Junho, às cinco da manhã já começa a vir o dia e nós, eufóricos com o bailarico, pensamos: E se fossemos para o Monte de Prado acabar de limpar?”. Assim se fez.

Eram mais de trinta, mas havia um que desbloquearia o trunfo necessário ao desempenho da missão. “Estava connosco o Firmino, filho do empreiteiro que estava a construir o primeiro quartel dos Bombeiros, junto à Igreja da Misericórdia. Então resolvemos pegar dali da obra uns vinte carrinhos de mão, sachos, engaços, pás e lá fomos. Naquela altura, as rodas dos carrinhos de mão eram de ferro e nós pelo caminho abaixo, ao fundo das Carvalhiças, com as rodas dos carrinhos a bater nas pedras fizemos um estardalhaço tal que acordamos toda a gente. Foi um falatório pela vila, naquele dia”, conta Aurélio Cardoso.

Já era Agosto quando conseguiram colocar as balizas, feitas em madeira de pinheiro, cedidos pela Junta de Freguesia e trabalhados pela serração que havia na Costa. Seriam roubadas antes do jogo da semana seguinte, e só quando fizeram as balizas em cimento a obra perdurou, mas não retiremos brilho à primeira inauguração “Fizemos os buracos e colocamos as balizas. Levamos duas bolas, devíamos ser uns quarenta, jogamos vinte contra vinte, com umas bolas que eram do tempo dos Vitoriosos, já tinham duas camadas de remendos na câmara-de-ar”.

O ataque ao fumeiro da dona Angelina

Nestas jornadas estafantes por amor à camisola, “a larica era muita” e não raras vezes, quando os primeiros cachos maduros começavam a surgir nas latadas de vinha, o plantel avançava em força para a ramada, antecipando em muito a vindima que o proprietário da vinha tinha em mente fazer.

Quando não havia uvas – ou o proprietário andava por perto, atento que estava às mobilizações – os que tinham mais posses recorriam à D. Angelina, que lhes vendia pão e vinho… para o caminho de regresso. De uma destas paragens para consolo dos jogadores reza uma história que deixamos na íntegra, tal como Aurélio Cardoso se lembra.

O plantel de ’57

“Sabíamos que ela tinha chouriças e um dia combinamos entre nós que o mais matreiro entraria por outro lado. Chegávamos lá como sempre e quando a dona Angelina descesse connosco até à adega para tirar o vinho, ele ia à cozinha ao fumeiro e limpava de lá três ou quatro chouriços. Assim foi, enquanto ela foi connosco, ele forrou os bolsos com três ou quatro chouriços, mas depois pensou que a senhora se calhar os tinha contados e mudou de estratégia: mordeu mais três ou quatro e deitou-os ao chãoNós já tínhamos o vinho, perguntamos-lhe se nos arranjava um bocadinho de pão. Ela foi acima à cozinha buscar o pão e voltou, desconsolada: «Ai, olhem como os gatos me puseram quatro chouriços, enquanto estive aqui em baixo!». E nós: «Pois é, dona Angelina. E agora, que lhes vai fazer?». «Eu não os quero, todos mordidos pelos gatos não!». Era a nossa deixa: «Pois então queremo-los nós, que temos fome. Cortamos o mordido dos gatos e vai o resto». Fomos à torneira, lavamo-los por terem estado no chão e fizemos ali um banquete com aqueles quatro chouriços, mais os que o nosso colega tinha metido aos bolsos”. Vidas.

 

Os cinco bravos de Cristóval (e a equipa da Rua Verde)

 

Em 1957 surgia a necessidade de dar o passo seguinte.

Quiseram nomear uma direcção, mas naquele tempo fazia-se apenas um jogo por mês, com equipas dos concelhos em redor, ou mesmo da Galiza, de Arbo. Não era por falta de clubes da terra com quem jogar, convirá frisar. Em São Gregório (Cristóval) havia uma equipa de futebol, o Ruaverdense, composto por jovens da Rua Verde. “Só naquela rua havia juventude para formar uma equipa e era tudo jovens robustos, muito resistentes de andarem a passar carga, no contrabando”, recorda Aurélio.

Na mesma freguesia surgiu ainda Os Fronteiriços, equipa de onde saíram alguns resistentes jogadores para a equipa principal do SC Melgacense – naquela altura havia também equipa B, para jogar com as Freguesias – entre eles cinco raçudos atletas: Parrula, Vau, Mangano, Toninho e Julinho. “Vinham quando eram convidados, mas eram muito bons jogadores”.

A resistência física sempre foi uma vantagem dos jogadores melgacenses. Fica por isso um apontamento daquela que seria uma estratégia para ganhar os jogos, que consistia em cansar o adversário antes de chegar ao relvado. O fundador, jogador e ex-presidente do clube ajuda-nos a perceber.

Quando os Bombeiros de Melgaço passaram a ter quartel próprio, deixaram livre a sala que usavam como apoio, assim como os chuveiros, num espaço nas traseiras dos Paços do Concelho. A autarquia não cedera o mesmo espaço para sede do clube, mas permitia que os jogadores se equipassem e tomassem banho nas instalações entretanto libertadas.

Assim, depois de equipados lá iam, de peito cheio, vaidosos, e ainda davam uma volta pelas ruas da vila – “as raparigas vinham ver-nos a passar” – antes de irem em corrida até ao campo de futebol do Monte de Prado, por caminho de pedras. Ora as equipas visitantes, que iam treinando a técnica e pouco habituadas a fazer corta-matos antes dos jogos, perdiam vigor no pelado.

“No primeiro quarto de hora nem tocávamos na bola, jogavam eles bonito e nós a ver, mas depois de vinte minutos eles cansavam e caíamos nós com a velocidade em cima e ganhávamos. Porque nós de táctica… Para onde a bola fosse, íamos três ou quatro atrás dela. A nossa táctica era essa, e chegamos a fazer vinte e seis jogos sem perder”, diz Aurélio Cardoso.

Só mesmo o Lindoso (Ponte da Barca), equipa formada por trabalhadores da barragem, mostravam a sua qualidade nas partidas. Treinavam todos os dias depois do trabalho. “Foi a primeira vez que saímos e tomamos banho de água quente. Nos outros lados todos era água fria, mesmo no Inverno”.

 

Aurélio Cardoso assistiu às mudanças nas condições de treino e de mobilização associativa enquanto vice-presidente, e garante que só a persistência mobilizava as pessoas a colaborar e até a ir aos jogos.

“Tivemos cem pessoas a pagar no mínimo cem euros por ano e quarenta a pagar duzentos. Uma vez fizemos um mega-jantar no Chafarix e conseguimos angariar 4000 mil euros por fora, já com as contas do jantar pagas. O mínimo para participar neste jantar eram 25 euros, mas tivemos muita gente que deu 100, 200 e até 400 euros”, observou.

Uma realidade diferente da que se seguiu nos anos seguintes, que Aurélio Cardoso assume ter sido “uma vergonha” para o clube ter tido jogadores “a passar fome” e aos quais ainda teve de “arranjar colchões”. “Mais valia não se ter feito nada”.

Hoje sem o volume de empresas anunciantes que nos primeiros anos de jogos no Centro de Estágios se associaram – “angariamos 76 anunciantes, algumas a pagar 500 euros” – o futebol melgacense resigna-se hoje a um papel menos expressivo na sua comunidade.

Nas últimas épocas, são frequentes as desistências dos treinadores que prometem no início da época a estabilidade que não cumprem para lá de Janeiro, por “razões pessoais”. As mesmas de sempre.

Parece não haver capacidade financeira para manter o clube com um plantel sólido, nem interesse associativo que o promova. Esperam-se melhores dias para o futebol em Melgaço, mas para não fecharmos este texto revivalista com apontamentos tão negativos, refira-se a recente aposta noutras modalidades que o SC Melgacense recebe no seu seio, enquanto marca histórica do concelho, como é o caso da patinagem ou até do futebol feminino. Afinal, mais do que competição, o desporto é associativismo e convívio, e esse parece não ter esmorecido entre a comunidade melgacense.

João Martinho