R – Recursos Descartáveis | A (tele)novela que não passa na 4 mas na vida real e não vai à Assembleia
A estratégia económica de Melgaço, a par da que o país tem assumido devido à sua posição geográfica, assenta na valorização de dois ou três produtos de charneira, com potencial de valor acrescentado, e nos serviços. O que não desvaloriza a sua importância, pois o turismo e os serviços que lhe estão associados geram bastante riqueza. A nível nacional, e segundo números do Turismo de Portugal, o número de dormidas associadas a este sector, entre 2010 e 2019 subiu de 37 milhões para 70 milhões “o maior valor de que há registo”, assume a mesma fonte.
No que ao valor em euros isto significa, e ainda segundo o Turismo de Portugal, o aumento é de 7,6 mil milhões de receitas em 2010 para 18,4 mil milhões em 2019. Portanto, até ao percalço da pandemia, é inegável que a importância do país no seu todo enquanto destino turístico é positiva e gera economia.
Contudo, há a lamentar a forma descartável como os recursos humanos do território são tratados, mesmo em concelhos onde a mão-de-obra é escassa. E pouco inclusiva, apesar dos esforços que entidades como a Delegação de Melgaço da APPACDM, que está em vias de validar cursos que valorizem os seus utentes para as áreas de trabalho mais necessárias do concelho (mais informação na edição impressa de Junho do jornal).
Isabel Perestrelo (nome fictício, naturalmente, como vem sendo apanágio desta rubrica) trabalha num serviço local, ligado à venda a retalho, uma “super área” que recolhe as vantagens disso mesmo, por ser a única de maior dimensão. A trabalhadora sente-se enquadrada, útil e a desenvolver funções fazendo parte de uma empresa estável, numa área onde algumas das iniciativas empresariais sofrem com o despovoamento, desinteresse ou quiçá ordem natural das coisas. Está há mais de cinco anos na empresa, sente que faz parte dos recursos essenciais.
Num dia de Janeiro, pressente que vem aí mudanças, que acontecem mesmo, três dias depois. Extinguem-lhe o posto de trabalho (ainda o conflito Russia/Urcrânia não se fazia sentir por cá) e dizem-lhe para esperar sentada. Literalmente. Às 11 horas de uma segunda-feira chamam-na à sala da gerência e dizem-lhe que deixará de prestar serviços à ‘super-empresa’, por fim do seu posto e por não se enquadrar nas restantes funções que ali são desempenhadas.
E a partir daí desenvolve-se todo um processo de resolução do contrato idêntico ao de um comercial em tempos idos da CEAC ou da ACN, um género de “agarre já a oportunidade, assine já connosco”, mas neste caso a urgência era para que Isabel Perestrelo fizesse parte do plantel de desempregados.
Aproveitam o desconhecimento dos trâmites legais de Isabel, acompanham-na a casa e aos representantes da empresa para resolver o contrato e em menos de nada, despem-lhe a farda de trabalho e enviam-na para casa com meia dúzia de folhas, que não entende, mas que acredita assegurarem-lhe os apoios base para viver até que nova oportunidade de trabalho possa surgir, dentro das suas possibilidades.
O IEFP reconhece-lhe o estatuto de desemprego, e regista-a em base de dados para eventuais ofertas que se enquadrem – embora a aplicação prática seja muito discutível, uma vez que é mais eficaz em arranjar cursos parcamente pagos aos formandos, razoavelmente aos formadores e obrigarem a um género de vínculo que não resolve a vida a ninguém – mas deixam Isabel sem possibilidade de receber subsídio de desemprego.
Aqui, com a “sofreguidão” na resolução de contrato, a entidade não explicou, convenientemente ou não, que as cruzinhas que se punham nos formulários da Segurança Social seriam determinantes para ficar elegível para subsídio de desemprego. Assim, e além da indemnização a que tinha direito por ter sido despedida, Isabel via-se obrigada a ‘gastar do ganhado’ até acabar, ou numa corrida em contrarrelógio para encontrar trabalho antes que o pé-de-meia esgotasse.
Ou então, a via que causava mais achaques: Recorrer a um advogado para fazer valer os seus direitos. Assim o fez, mas esperou quase três meses para que o bom senso e a estrutura social que apoia situações como esta de facto funcionassem e lhe dessem esta rede de sobrevivência.
Sem quantificar ficam os danos psicológicos que este desemprego inesperado causaram, o sentimento de salto para o vazio sem rede e o medo que o mercado de emprego não respondesse com outra proposta antes do fim do dinheiro, para quem tem idade para trabalhar, mas até lá, também contas para pagar.
Face a estas inseguranças, chegam a ser mais francas as ofertas de emprego sazonais que acabam em Setembro ou Outubro, que embora não tendo perspectivas, servem para quem queira ganhar dinheiro no Verão, do que estas estratégias que geram desconforto desconfiança nas entidades locais a quem, de dentro ou de fora, escolha o concelho mais a norte para trabalhar.
É uma “novela” que não passou na 4, nem atacou a dignidade de nenhuma raça (além de um certo abalo à dignidade e direitos humanos), mas não é ficção e devia preocupar-nos mais, no tecido económico e dinâmico local.