AVM ARQUIVO [AGO2014]: À conversa com o padre Raul Fernandes: “Os padres não devem ser profissionais do culto”

Nesta transição do arquivo de textos/reportagens do jornal “A voz de Melgaço” para o site www.vozdemelgaco.pt, recordamos pessoas, momento e eventos que marcaram as edições impressas do jornal. Começamos pela década 2010-2020, mas iremos mais atrás nas sete décadas de história (e histórias) desta publicação. 

Hoje recordamos Raul Fernandes, o padre que, em finais de Julho de 2014, assumia as paróquias de montanha de Melgaço (e uma de Arcos de Valdevez, como membro do (à altura) comissariado da Peneda.

Texto publicado na edição impressa de Agosto de 2014 do jornal “A Voz de Melgaço”

João Martinho


“A melhor coisa que tenho no mundo são as minhas paróquias”

Raul Fernandes, de 37 anos de idade, natural de Ponte da Barca, encontrou em Parada do Monte o seu berço paroquial. A frase não é textualmente do próprio, mas o seu discurso polvilha-se com recorrentes elogios a uma comunidade que o próprio assegura ser “única” na diocese de Viana do Castelo, onde pertence.

“A Voz de Melgaço” esteve à conversa com o padre que é também o dinamizador de alguns projectos sociais e culturais do concelho de Melgaço, além de um dos rostos do comissariado da Senhora da Peneda. Pontualmente, é interprete em peças de teatro. Recentemente, vimo-lo assumir o papel de pastor que promete dar caça ao lobo no espectáculo de teatro “Uivo”. O que move este pároco, que subverte a imagem comum dos párocos do interior, num dos concelhos onde os exemplos são antagónicos entre freguesias vizinhas e a religiosidade vincada e conservadora poderá ser sensível aos “padres novos”?

Há dez anos, três meses após ser ordenado padre, dava entrada na vida católica de Parada do Monte – assumiria também as paróquias das freguesias de Cousso, Cubalhão e Gave –, uma terra que não vinha com manual de instruções mas com a qual foi aprendendo a lidar a partir de dicas espontâneas que lhe iam chegando em encontros com alguns paroquianos mais sensibilizados para a completa integração do pároco.

E se é certo que, sobretudo no mês de Agosto, as ruas das aldeias minhotas se enchem de vida e trazem um bulício diferente às ruas e às romarias, Raul Fernandes conta nos restantes meses do ano com cerca de 370 pessoas na paróquia de Parada do Monte, onde acaba por desenvolver muitas das suas tarefas de acompanhamento de crianças, jovens e adultos, desde a catequese às actividades culturais.

“A melhor coisa que tenho no mundo são as minhas paróquias. São a minha paixão. Os defeitos que tinha quando vim para aqui, porque quando somos novos temos sempre aquelas ideologias, a gente aceitou bem os meus defeitos e, ao mesmo tempo, eu aprendi com eles a crescer enquanto pessoa”, exclama com satisfação.

E se o entabular de conversa é hoje um gesto normal entre o pároco e os devotos, para trás fica a crónica de uma adaptação. E como se adapta o povo a um padre que chega a uma aldeia do interior minhoto, com 27 anos “feitos de fresco”? Raul Fernandes diz que o respeito foi ganho mutuamente e hoje orgulha-se de poder ter, nas 29 festas que durante o ano se celebram na totalidade das paróquias, um extenso grupo de paroquianos que participa com o recato às celebrações eucarísticas.

“Mesmo as festas no Verão são participadas com dignidade, com respeito. Na festa de S. Mamede ou da Senhora do Rosário, dá gosto ver uma procissão de velas onde há muita gente, mas vão em silencio, ou a rezar, em oração.

A “menina dos olhos” do padre Raul é, como o próprio indica, a catequese, uma das suas grandes preocupações e um dos ensinos que poderá estar na base da amizade ampla para com jovens e adultos daquela paróquia. Uma missão de esclarecimento que, ainda que disciplinadora, não se impôs como castigo e tem merecido a atenção de miúdos e graúdos daquelas paróquias do Alto Mouro.

“Não estamos a exigir nada que a igreja não exija. Nós estamos a por em prática aquilo que a igreja pede na formação das nossas crianças, porque sem formação não podemos ser cristãos esclarecidos. Se queremos ser uma igreja séria, comprometida e responsável, eles tem de saber o que é ser cristão. Nos não podemos gostar de uma pessoa sem a conhecer, por isso não podemos gostar de Cristo sem saber quem foi”.

Terminou com a catequese de Verão, que, segundo indica, não fidelizava nem aproximava os participantes pois a sua maioria eram emigrantes que frequentavam a catequese durante as férias. Em vez disso, abriu três salas de catequese, duas da paróquia e uma por cedência de espaço de um paroquiano. Conta com 20 catequistas e a participação junta pais e filhos. Mão na mesma sala, mas na mesma busca pela construção de uma fé esclarecida.

“Os padres não devem ser profissionais do culto”

É um dos impulsionadores do Coro de Parada do Monte, criado com a missão de animar as celebrações eucarísticas de domingo, mas que ultimamente tem sido mais do que um simples coro de igreja. Recentemente participaram no espectáculo de teatro e dança na paisagem “Uivo”, promovido pela Associação Comédias do Minho”, em colaboração com o grupo amador de teatro local “Os Simples”, e é também este grupo de Coral que dá forma às peças teatrais que anualmente tem levado a efeito, no período natalício. Os jovens, estudantes, alguns em universidades fora do concelho, voltam a cada domingo para cumprir a sua obrigação para com a paróquia, ou porque visitar a sua terra fosse atónica necessária para enfrentar a semana. “Vir ao Coro é como tomar o medicamento”, confidencia o padre Raúl. “Há alguma coisa que os atrai”.

Em dias, o padre Raúl acompanha os jovens nas suas saídas mais festivas. “Faz parte da nossa socialização”, diz. Não há qualquer semelhança (nem coincidência) entre o padre Raul e a imagem do padre recatado e por vezes austero a que o passado nos habituou.

Talvez por isso, o padre Raul não faz cerimónia quanto a impressão que aparentemente deixa junto dos seus paroquianos: “Não tenho inimigos em nenhuma paroquia, dou-me bem com toda a gente, mas sei que não agrado a toda a gente, e levo respostas que me custam a digerir”, revela.

Também por isso, o padre que hoje assume a gestão espiritual, cultural e económica de uma das paróquias mais participativas do concelho de Melgaço, assume estar atento ao dia em que deve assumir sair. “Eu tenho consciência de que não posso estar aqui a vida toda. A primeira coisa que disse às pessoas quando cheguei foi que, quando tivessem alguma chatice ou problema comigo, digam-mo, que eu sou a primeira pessoa a ir embora. Temos de perceber quanto estamos a mais e ter consciência para ir embora. Se não há padres, paciência, há menos, mas que haja aqueles que façam o trabalho bem feito e que as pessoas gostem deles”.

Com uma análise descomprometida sobre a situação da igreja, o padre Raul identifica dois dos problemas que considera serem causadores de algum desinteresse dos fiéis na participação na vida cristã: Um factor remete-nos para o passado, quando a igreja era instrumentalizada e severa, hoje mais tolerante; o outro remete-nos para uma questão actual, que é a “profissionalização” da Igreja.

“Esse é que é o grande erro que se pode cometer. Os padres serem profissionais do culto, não, nunca. Nós somos pessoas que estamos ao serviço e vivemos da generosidade das pessoas, se nos profissionalizarmos, seremos um funcionário como outro qualquer. Em Viana do Castelo vamos cair nesse erro, e isso é mau”, indica

 

Projecto Social

Após alguns anos de funcionamento, a cozinha do Centro interparoquial, que dá resposta social às paróquias circundantes da freguesia de Parada do monte, mudando os estatutos e o serviço para o Alto Mouro, revelou-se insuficiente para a necessidade de resposta que a unidade terá de dar.

“Com a Junta [de Freguesia] anterior já tínhamos chegado a um consenso para fazermos esta obra e com esta junta tenho a certeza de que continuaremos”, assegura o pároco, apontando por isso para um futuro breve a intervenção no alargamento da infra-estrutura do centro.

“Sr. padre, aqui nunca peça nada a ninguém”

A surpresa do padre Raúl revelou-se aos primeiros dias de exercicio em Parada do Monte. Um dia abordaram-no e disseram-lhe: “Não faz falta fazer peditório. Não faz falta dizer nada, só que é preciso fazer a obra. E desde que estou aqui, nunca pedi um cêntimo às pessoas. Este povo olha para as necessidades da igreja como uma mãe olha para as necessidades de um filho”.

O seminário ontem… E hoje?

“Os padres são fruto da formação que têm. Tenho saudades do meu tempo de Seminário. Era uma educação rigorosa. Ainda sou do tempo em que as aulas [no seminário de Braga]eram internas. Tínhamos musica, desporto, saíamos só ao domingo à tarde umas horas e com grupos combinados, andávamos em forma, do mais pequeno ao maior, em silencio. Levantavamo-nos para saudar as pessoas. Estas coisas parecem insignificantes, mas no fim reflecte-se na educação das pessoas”, recorda o pároco, que na comparação entre o seminário de outrora e o de hoje, há diferenças a lamentar.

“A nós ensinavam-nos que o Seminário é o coração da diocese. Se é o coração da diocese, temos de ter um bom médico a cuidar dele. Eu, e muitos outros, pensamos que se calhar o seminário de Viana não tem um bom médico a cuidar dele. E digo isto com tristeza”, considera o pároco. Encantado com o destino que lhe foi traçado até ao momento, o pároco não deixa de lamentar o que se passa não muito longe de Parada do Monte. “Estou no monte, estou no paraíso. Não estou acomodado, estou com o melhor povo do mundo e estou activo e vivo e há coisas que me entristecem”.